Discussão
A prática de medicina nuclear no Brasil possui décadas de existência, no entanto, as atividades de radioisótopos administradas a pacientes durante exames diagnósticos ainda são norteados por metodologias e níveis de referência empregados em países mais desenvolvidos economicamente, tais como EUA e países da Comunidade Européia. Esta prática pode favorecer a rápida incorporação de novos procedimentos e tecnologias no cenário brasileiro, mas não leva em consideração as diferenças econômicas e sociais existentes entre os países.
Apesar da existência de estudos prévios visando estabelecer DRLs para a área de medicina nuclear no Brasil(14,15), sua adoção ainda não foi efetivada pelos órgãos governamentais, apesar da recomendação de se seguir tais níveis de referência(16). A existência desses níveis de referência em diagnóstico favorece o controle e a redução das exposições na área médica, no entanto, eles não devem ser seguidos rigidamente, podendo ser flexíveis quando justificados clinicamente. Na área de Radiologia é comum o estabelecimento de níveis de referência baseados em doses de radiação (mGy)(17), contudo, na área de Medicina Nuclear esses níveis de referência são geralmente estabelecidos em forma de atividades a serem administradas a pacientes (MBq)(8) para a realização dos diferentes exames diagnósticos. A atividade “ótima” a ser utilizada em cada exame é uma variável difícil de ser estabelecida, pois ela pode ser influenciada por diversos fatores, tais como a qualidade da imagem diagnóstica que se deseja atingir, tempo decorrido desde a administração do radiofármaco até a aquisição da imagem do paciente, contagem e taxa de contagem de fótons necessária para formar a imagem, características físicas dos equipamentos (colimadores, detectores, eficiência e sensibilidade do sistema de detecção etc) e dos próprios pacientes (peso, altura, condições clínicas, biocinética do radiofármaco em seus organismos, etc.), o que necessitaria de um estudo de “otimização” direcionado para cada tipo de exame, sem deixar de considerar fatores sociais e econômicos nessa análise(18). Como alternativa viável, o DRL poderia ser estabelecido inicialmente com base no percentil 75 para o conjunto de atividades médias administradas nos diferentes exames diagnósticos(19), considerando que as atividades praticadas pelos SMNs geralmente encontram-se otimizadas de acordo com as necessidades específicas de cada Instituição e esta alternativa para o estabelecimento do DRL foi a base do presente estudo.
Este estudo englobou um total de 107 SMNs, o que corresponde a 25% de todos os SMNs existentes no Brasil (tabela 1). A região Norte do Brasil contribuiu pouco para o conjunto de dados, apenas 4% das clínicas existentes na região aceitaram participar do projeto. Também não foi possível obter dados de 12 estados brasileiros, apesar dos esforços em obtê-los. A baixa adesão ao projeto pode ser reflexo da não integração da comunidade atuante na área de medicina nuclear, vasta dimensão do território brasileiro ou simplesmente reflexo da incompreensão da importância e da natureza do estudo em relação ao controle e redução das exposições, bem como padronização e evolução da técnica, ofertando níveis de referência a novos profissionais e investidores sem recorrer a protocolos ou guias produzidos em outros países que muitas vezes podem não refletir a prática de medicina nuclear existente no Brasil. Todavia, os dados levantados neste estudo servem como ponto de partida e permitem conhecer um pouco da medicina nuclear no cenário brasileiro.
A tabela 2 traz uma visão geral das atividades administradas para os diferentes exames diagnósticos, incluindo a proposta de DRL para pacientes adultos. Pode-se observar que as atividades administradas para um mesmo tipo de exame são bastante heterogêneas, alcançando valores superiores a 20 vezes entre o valor mínimo e máximo das atividades praticadas por um dado SMN em relação a outros, mesmo dispondo de semelhantes equipamentos de imagem. Por exemplo, na cintilografia renal dinâmica utilizando o radiofármaco 99mTc-DTPA, o valor mínimo de atividade reportada foi de 148 MBq (4 mCi) enquanto a máxima foi de 740 MBq (20 mCi), correspondendo a uma diferença de 5 vezes entre os valores, com semelhante diferença encontrada para a cintilografia renal estática; para a cintilografia de glândulas salivares utilizando o 99mTc-Pertecnetato foi observado uma diferença de 10 vezes entre as atividades mínima (111 MBq; 3 mCi) e máxima (1.110 MBq; 30 mCi) e para o estudo do esvaziamento gástrico (sólidos ou líquidos) utilizando o 99mTc-Fitato a diferença entre as atividades mínimas e máximas supera o valor de 10 vezes. Assim, independentemente de qual seria a melhor atividade a ser utilizada, observa-se uma grande dispersão das atividades praticadas.
É importante enfatizar que alguns valores de atividades indicados por alguns SMNs são questionáveis, por exemplo, para a cintilografia da tireoide utilizando o 99mTc-Pertecnetato existe a indicação que a atividade mínima praticada pelos SMNs tem sido de 9 MBq (0,24 mCi), no entanto, análises estatísticas indicam que este valor de atividade não tem representatividade em relação ao conjunto total de atividades praticadas, seja com base na média (410 MBq; 11 mCi) ou mediana (370 MBq; 10 mCi). Também é questionável a aplicação deste montante de atividade na rotina clínica considerando a eficiência dos sistemas de detecção e o tempo necessário de aquisição de imagem utilizando este nível de atividade. Desta forma, os dados apresentados na tabela 2 devem ser observados com uma certa cautela, mas, por outro lado, também reforça a necessidade da existência de níveis de referência que favoreçam a padronização das atividades a serem empregadas nos diferentes exames diagnósticos em Medicina Nuclear.
O valor de DRL proposto neste estudo para o exame de PET oncológico utilizando o radiofármaco 18F-FDG é similar ao valor indicado por Oliveira e colaboradores (388 MBq; 10,5 mCi)(15), embora Oliveira e colaboradores tenham realizado um estudo mais aprofundado sobre este tipo de exame e características dos equipamentos de PET utilizados no Brasil para indicar um DRL mais apropriado.
A Tabela 3 apresenta uma comparação entre os valores de DRL propostos para o Brasil para alguns tipos de exames e os respectivos valores indicados pela Agência Internacional de Energia Atômica(7), Sociedade Americana (SNMMI)(12) e a Associação Européia (EANMMI)(13) de Medicina Nuclear e Imagem Molecular. Em comparação com os valores indicados pela SNMMI, pode-se dizer que os valores propostos de DRL para o Brasil estão geralmente próximos ao intervalo de valores indicados por esta sociedade. Provavelmente isto se deve ao fato do Brasil utilizar esta sociedade como referência quando da incorporação de novos exames ou protocolos na área de Medicina Nuclear. Por outro lado, os valores de DRL propostos são duas ou três vezes maiores que aqueles indicados pela EANMMI, não sendo possível estabelecer pelo presente estudo os motivos que levam as atividades indicadas pela EANMMI serem muito inferiores aos indicados pela SNMMI. No entanto, vale ressaltar que em levantamentos sobre DRLs em países Europeus existe a indicação que mesmo na existência de níveis de referência para a área de Medicina Nuclear, as razões entre os valores máximos e mínimos das atividades administradas para a realização de um mesmo tipo de exame pode chegar a valores tão elevados quanto 10 vezes o praticado por um país em relação a outros(8,20,21,22,23), diferença também observada nas atividades mínimas e máximas indicadas pela SNMMI para os diferentes tipos de exames. Isto demonstra que a variabilidade das atividades administradas para um mesmo tipo de exame em Medicina Nuclear não é exclusividade do Brasil, mas encontra-se generalizado, inclusive nos países economicamente desenvolvidos, o que pode indicar a existência de outros componentes na escolha das atividades a serem administradas aos pacientes que não somente aqueles ligados diretamente com o parque tecnológico existente em cada país, tais como a situação clínica do paciente e protocolos de aquisição de imagens (planas ou tomográficas).
Geralmente as atividades estabelecidas para pacientes pediátricos são baseadas nas atividades administradas para pacientes adultos(21) Na literatura existem alguns métodos descritos sobre ajustes de atividades para pacientes pediátricos, entre eles podemos destacar: utilização de regra de três simples para ajustar a atividade de acordo com o peso da criança (kg) e utilizando como base a atividade administrada para pacientes adultos pesando 70 kg ou ajustes de acordo com a superfície corpórea dos pacientes pediátricos (m2) em relação ao paciente adulto padrão (1,73 m2); regra de Webster que leva em consideração ajustes de acordo com a idade da criança e o método proposto pela EANMMI que considera o peso corpóreo do paciente pediátrico, o tipo de radiofármaco a ser administrado, bem como os limites de detecção dos atuais equipamentos de imagem utilizados pela Medicina Nuclear, considerando ainda um valor mínimo de atividade a ser administrado em cada exame(9,10,11). Vale ressaltar que ajustes baseados somente na idade do paciente pediátrico, regra de Webster, não leva em consideração fatores importantes nos ajustes das atividades tais como o peso dos pacientes e características físicas dos equipamentos de imagem, fatores esses que podem influenciar fortemente a quantidade de atividade a ser utilizada para gerar uma boa qualidade de imagem. Soma-se a isto as mudanças das características físicas da população mundial, principalmente em decorrência dos novos hábitos sociais e alimentares, que tem conduzido boa parte da população ao estado de sobrepeso ou obesidade, mesmo entre crianças(9,24). Tendo em vista que o método descrito pela EANMMI leva em consideração um maior número de fatores nos ajustes das atividades, incluindo o peso dos pacientes, este método permite um melhor ajuste das atividades pediátricas de acordo com a rotina encontrada na prática clínica e poderia ser utilizado como referência para ajustes de atividades pediátricas no Brasil, algo que já vem ocorrendo em outros países, até que surjam métodos mais aprimorados. A figura 2 apresenta fatores de correção para as atividades a serem administradas a pacientes pediátricos baseado nos valores de DRL propostos para indivíduos adultos, isto de acordo com a classificação dos órgãos a serem estudados, sejam eles a tireoide, rins e demais órgãos do corpo humano. O percentual de redução de atividade de acordo com o tipo de exame e peso corpóreo dos pacientes está validado de acordo com as recomendações da SNMMI(12) e EANMMI(13).
Para facilitar o rápido acesso às atividades pediátricas foi desenvolvido neste estudo uma fórmula matemática para o cálculo dessas atividades baseado nos valores de atividade de referência para pacientes adultos (tabela 2) e fatores de correção das atividades de acordo com as recomendações da SNMMI e EANMMI (figura 2). Neste estudo, prefere-se não indicar atividades mínimas a serem administradas a pacientes pediátricos tendo em vista que estas atividades podem variar de acordo com a experiência clínica local, sendo mais importante enfatizar o compromisso em administrar o mínimo de atividade possível sem comprometer a qualidade de imagem. Também, para pacientes pediátricos e submetidos a exames de PET cerebral (3D) e oncológico (2D) com o radiofármaco 18F-FDG existe a indicação que respectivas atividades de 3 MBq/kg e 6 MBq/kg poderiam gerar uma boa qualidade de imagem, indicando que atividades para pacientes com peso corpóreo em torno de 3 kg a 5 kg poderia ser inferior às indicadas por intermédio dos ajustes de correção, algo bem discutido por Holm e colaboradores(25,26,27). Vale ressaltar que para pacientes adultos ou pediátricos com peso corpóreo superior a 70 kg existe a necessidade de ajustes nas atividades a serem administradas, todavia, os fatores de correção para estes ajustes poderiam ser obtidos pela extrapolação da linha de tendência dos fatores dispostos na figura 2 para os diferentes tipos de estudos. Ademais, é importante indicar que uma iniciativa internacional promovida por diferentes sociedades de medicina nuclear tem sido colocada em prática objetivando estabelecer níveis de referência globais, o que pode favorecer uma maior homogeneidade nos valores de DRLs praticados pelos diferentes países, e este parece ser o caminho para uma maior padronização da técnica e redução das exposições médicas em diferentes países ao mesmo tempo, especialmente em exposições de pacientes pediátricos(28).
É importante ressaltar que valores de DRL, sejam aqueles estabelecidos para indivíduos adultos ou pediátricos, não devem ser utilizados para identificar boas ou más práticas nem entendidos como limites de atividades, como já indicado em outros estudos(8,15), mas como ponto de referência e ferramentas para redução e controle das exposições médicas(5). Praticar os valores de DRL propostos não implica necessariamente estar trabalhando de forma otimizada e com elevado padrão de qualidade, pois o estabelecimento de DRLs está envolvido em um contexto mais amplo que se chama Garantia da Qualidade e caso a qualidade não englobe, por exemplo, a execução rotineira de testes de desempenho de equipamentos de imagem, testes de desempenho de calibradores de atividade, identificação correta dos pacientes, radiofármacos e atividades a serem administradas, realizando previamente, quando indicado, um bom controle de qualidade desses radiofármacos, a qualidade total do processo estará comprometida(8). Neste contexto, o mais importante é ter em mente a administração de atividades que gere, dentro das limitações particulares de cada SMN, uma boa qualidade de imagem, com informações úteis à equipe médica para uma melhor condução do caso clínico. Ater-se aos valores de DRL sem levar em consideração a história clínica e as necessidade do paciente, pode gerar imagens de má qualidade ocasionando reconvocações ou aumento dos índices de falso-positivo ou falso-negativo que efetivamente podem alterar a conduta junto ao paciente e, muitas vezes, introduzir riscos reais desnecessários caso os procedimentos não produzam imagens com qualidade diagnóstica(20,29,30). Assim, um bom julgamento deve existir durante a escolha da atividade a ser administrada ao paciente. Maiores atividades podem ser necessárias principalmente para pacientes obesos ou com necessidades clínicas especiais, por exemplo, aumento de atividades para pacientes idosos apresentando quadro clínico de dores, dificuldade em se manter deitado por longos períodos de tempo, claustrofobia, e que justificam clinicamente um menor tempo de exame. Assim, a quantidade de atividade a ser administrada deveria levar em consideração as necessidades clínicas de cada paciente individualmente e não pela questionável existência de riscos provenientes de doses baixas de radiação geradas em procedimentos diagnósticos em Medicina Nuclear.
Atualizações periódicas dos valores de DRL deveriam ser encorajadas considerando o caráter dinâmico dos procedimentos médicos e a evolução tecnológica que ocorre na área de medicina nuclear.